quarta-feira, 1 de junho de 2011

Para além do kit anti-homofobia

Luiz Mello[1]

Parece que se abriram os portais da insensatez fundada em pseudoverdades desde a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal, em 5 de maio, que equiparou em direitos e obrigações as uniões homo e as heterossexuais. No Senado Federal, menos de uma semana depois, a ira nada santa de parlamentares ligados a grupos evangélicos e católicos impediu a apreciação do Projeto de Lei nº 122, que define punições para a homofobia e tramita no Congresso Nacional há mais de dez anos. Ato contínuo, o mesmo grupo de parlamentares radicalizou as críticas moralistas ao material de combate à homofobia que estava na iminência de ser distribuído pelo Ministério da Educação a 6.000 escolas de ensino médio do país. Resumo da ópera: por ordem expressa da Presidenta Dilma Rousseff, cancelou-se toda e qualquer divulgação de material informativo e educativo relativo ao combate à homofobia produzido com recursos do Governo Federal, sob o argumento de que não se podia apoiar a “propaganda de opções sexuais” (sic!).

Se a decisão do STF destaca de maneira exemplar a inconstitucionalidade de qualquer tentativa de discriminação de lésbicas e gays em todos os níveis da vida social, incluindo os fundamentais direitos civis da ordem da família, a suspensão da distribuição do kit anti-homofobia jogou baldes de água gelada em nossas esperanças de que o Governo Federal não compactuaria com o obscurantismo prevalecente no Congresso Nacional, reforçaria o sentido democratizante da atuação do Poder Judiciário por meio da defesa inconteste da laicidade do Estado e ampliaria cada vez mais as políticas públicas de combate à homofobia e de promoção da cidadania de pessoas LGBT. Afinal, em 2008 foi realizada a I Conferência Nacional LGBT; em 2009 divulgou-se o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT; em 2010 foi criada a Coordenação Geral de Promoção dos Direitos de LGBT; e em 2011 foi instalado o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT, os dois últimos vinculados à Secretaria de Direitos Humanos. Mas nenhuma destas iniciativas do Governo Federal, resultantes de décadas de luta do movimento LGBT brasileiro, foi levada em consideração pela presidenta quando decidiu ouvir os neo-inquisidores.

Algo que me impressiona profundamente no debate que se instaurou no país depois das declarações desconcertantes da presidenta é como as vítimas preferenciais da homofobia – as pessoas LGBT – passaram a ser sistematicamente tratadas como algozes que reivindicariam supostos direitos especiais e/ou teriam um plano de dominação do mundo, a começar pelo desejo de conversão de todos à homossexualidade. Ora, ninguém “vira” gay/lésbica/bissexual/travesti/transexual por pura imitação e não se deve pensar que a vivência de experiências homossexuais é algo que macule nossa condição humana, já que em nossa sociedade e em todos os países democráticos do mundo a homossexualidade não é definida como crime ou como doença. Logo, não há nenhum argumento jurídico ou científico que possa deslegitimar as demonstrações públicas de afeto entre pessoas homossexuais ou o entendimento de que a homossexualidade é um caminho tão legítimo e possível de realização sexual e amorosa para qualquer pessoa quanto a heterossexualidade.

Ao invés de pensarmos que homofobia só se combate com prisão e ameaças de punição legal, o que precisamos neste momento é construir um acordo social mínimo fundado na compreensão de que não há nenhum problema legal, médico, psicológico, moral ou ético intrínseco à atração afetivo-sexual entre adultos do mesmo sexo, como também não o há na atração entre adultos de sexos diferentes. Afinal, inexistem evidências científicas de que pessoas homossexuais ou bissexuais sejam diferentes das heterossexuais em qualquer aspecto relevante para a vida social (inteligência, capacidade de trabalho, maturidade emocional, disponibilidade para a integração social etc), a não ser a profunda discriminação a que estão expostas e suas conseqüências físicas e psicológicas.

É perturbador que ainda hoje muitas pessoas diariamente gastem suas energias na defesa de uma ideologia em que a homossexualidade é vista como afronta à natureza ou ofensa às normas de convivência social. Afinal, que mal pessoas LGBT fazem à humanidade? Em que suas vidas colocam em xeque a possibilidade de existência de uma sociedade justa, fraterna e solidária? Em contrapartida, é fundamental lembrar que vivemos num mundo em que a violência foi banalizada, a corrupção faz parte da ordem do dia e o individualismo exacerbado nos fecha em mundos privados onde pouco nos preocupamos com a miséria material e psíquica dos que estão distantes do alcance de nossa visão e de nossos afetos. E praticamente ninguém faz nada para mudar esse estado de coisas, incluindo pessoas que têm fortes crenças religiosas. Mas por que será que a possibilidade de adolescentes e jovens terem acesso a um conjunto de representações positivas da homossexualidade incomoda tanto? Será que as propaladas “naturalidade”, “santidade” e “normalidade” da heterossexualidade são tão frágeis que desmoronariam diante da imagem de um beijo entre dois homens ou duas mulheres?


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[1] Professor da Faculdade de Ciências Sociais e pesquisador do Ser-Tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualdiade, da Universidade Federal de Goiás.
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Prof. Luiz Mello
Faculdade de Ciências Sociais
Universidade Federal de Goiás
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